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REPORTAGEM ESPECIAL – Quando o perigo mora em casa: TJRO enfrenta aumento alarmante de violência contra crianças e adolescentes

Dados mostram um retrato cruel da infância ameaçada: maioria dos abusos ocorre no próprio lar; juíza alerta para relações de poder que silenciam vítimas e perpetuam ciclo da violência

Foto: Creative Commons/Ilustrativa

Por Felipe Corona – TVC Amazônia

Em Rondônia, o ano de 2024 trouxe um dado perturbador: as denúncias de violência contra crianças e adolescentes, registradas pelo Ligue 180, cresceram 16,1%. Atrás desse número frio, está a face mais dolorosa de um problema que insiste em se repetir — e que, na maioria das vezes, começa dentro do próprio lar.

De acordo com o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, 70,9% dos casos de violência sexual contra crianças de 0 a 9 anos acontecem dentro de casa. Entre adolescentes de 10 a 19 anos, a porcentagem é de 63,4%. Em mais da metade das ocorrências, os agressores não são estranhos: 68% dos casos envolvendo crianças e 58,4% dos casos envolvendo adolescentes têm como autores familiares ou pessoas próximas.

Em Porto Velho, os números ecoam a gravidade do cenário: entre 2019 e 2023, 659 casos de violência sexual contra menores de 0 a 19 anos foram notificados. As maiores taxas estão concentradas em vítimas de 10 a 14 anos, seguidas por crianças de 6 a 9 anos. A esmagadora maioria são meninas.

E os agressores? O perfil é claro: homens em mais de 81% dos casos envolvendo crianças pequenas e em 86% dos casos envolvendo adolescentes.

O silêncio é o grande cúmplice

Foto: Fundação Fiocruz

Para Kerley Alcântara, juíza da Vara de Proteção à Infância e Adolescência de Porto Velho, os crimes mais frequentes contra crianças e adolescentes são de natureza sexual — e, quase sempre, cometidos por quem deveria proteger.

“São violências que nascem no seio familiar, alimentadas por relações de poder. O agressor se vê como dono da vítima. Controla, silencia, e transforma o lar num cárcere invisível”, indica ela.

A magistrada explica que os principais agressores ocupam posições de confiança ou autoridade sobre a criança, e que a motivação não é mero impulso, mas exercício calculado de dominação.

“Não é sobre desejo, é sobre poder. É sobre se impor sobre alguém que não tem defesa”.

Entre o medo e a denúncia

O aumento nas notificações pode estar ligado, em parte, a uma maior confiança no Ligue 180, que recebeu investimentos e campanhas de divulgação. Mas Kerley ressalta que essa visibilidade não significa, necessariamente, redução da violência.

“O que os números mostram é que as vítimas e testemunhas estão falando mais. Mas isso também revela que a violência nunca deixou de acontecer — e talvez nunca tenha sido tão alta”.

Ela lembra que o Tribunal de Justiça de Rondônia (TJRO) não possui estatísticas detalhadas próprias, mas a Vara de Crimes lida hoje com cerca de 2 mil processos em tramitação relacionados a esse tipo de ocorrência.

O acolhimento e a cicatriz

Em muitos casos, crianças e adolescentes são retirados de suas famílias e levados a casas de acolhimento, medida extrema para garantir sua segurança.

“Crimes contra crianças e adolescentes produzem danos devastadores que, mesmo com a punição dos culpados, dificilmente amenizam os efeitos negativos e duradouros para as vítimas”, reforça ela.

A juíza fica pensativa ao lembrar dos casos mais chocantes, como abusos contra recém-nascidos. “Os abusos contra eles [os bebês] sempre impactam fortemente e são considerados os casos mais chocantes”.

Como mudar o curso dessa história

Foto: Ministério Público do RS (MPRS)

Para Kerley Alcântara, enfrentar o problema exige ação em várias frentes: educação sobre direitos, capacitação de profissionais que lidam com crianças, campanhas permanentes de conscientização e fortalecimento da rede de proteção.

“Precisamos ensinar nossas crianças a reconhecer e nomear o abuso, para que o medo não seja mais forte que a palavra. Precisamos que professores, médicos e cuidadores sejam faróis capazes de enxergar no escuro”, comenta ela.

A juíza é realista quanto ao futuro: a tendência, segundo as expectativas do TJRO e coordenadores, é de aumento das ocorrências. A razão, diz, está tanto na maior visibilidade quanto no agravamento de fatores sociais, como pobreza e desestrutura familiar.

“Apesar dos avanços, ainda existem desafios em termos de recursos públicos, capacitação de profissionais e agilidade nos processos de atendimento e proteção às vítimas. Engajar órgãos de informação e imprensa em campanhas amplas e contínuas de conscientização, como o Maio Laranja, para educar a sociedade sobre os diferentes tipos de violência e como identificá-los e denunciá-los”, finaliza a magistrada.

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